CORREIO DA CARNEIRO - DEPARTAMENTO CURRICULAR DO 1.º C.E.B. DO A.F.G.CHAVES

sábado, 29 de novembro de 2008

HISTÓRIA DO DIA




O Papagaio do Restaurante

António Torrado (escreveu)

Cristina Malaquias (ilustrou)

Era um papagaio muito esperto. Tudo o que ouvia imitava. E até o que não ouvia...Tinha poiso no restaurante do senhor Albano, um modesto restaurante do bairro, sem nada de especial, salvo o papagaio. À sua conta, o palrador atraía a clientela, que vinha de longe só para ouvir-lhe as habilidades.
-Como te chamas?
Tratava todos por tu.
Não era um papagaio de cerimónias. O visado respondia, por exemplo:
-Manuel.
E logo o papagaio rimava:
- Pastel.
Ou caso fosse:
- Manuela.
O papagaio rimava:- Rodela de morcela.
Ou:
- Agostinho.
- Copo de vinho.
Sempre que fosse rima de comer ou de beber, o senhor Albano servia.
- Somos sócios - explicava o senhor Albano, muito contente com o negócio dos comes e dos bebes.
Mas não eram. E porque não eram, o papagaio gostava de pregar-lhe partidas.
Uma vez, um cliente, que precisou de ir à casa-de-banho e ia abrir a porta respectiva, ouviu uma voz dizer:
- Está gente.
O senhor recuou e esperou. Esperou o mais que pôde e mais não podendo foi dar conta da sua necessidade noutro sítio. Outra pessoa com vontade de ir à casa-de-banho e a mesmo voz a avisar:
- Está gente.
O caso repetiu-se, a ponto de o senhor Albano se intrigar. Ele próprio foi ter à porta da casa-de-banho.
- Está gente - respondeu a voz.
O senhor Albano não se conformou e abriu a porta. Como se calcula, o papagaio era o responsável. Agarrado pelo pescoço, teve de ouvir das boas do dono:
- Eu te dou a gente, papagaio de uma figa torta.
- Mão morta, mão morta, vai bater àquela porta - respondia o papagaio, muito esganiçado. Passados dias, a mesma coisa. Alguém com precisão inadiável e a porta da casa-de-banho fechada.
- Está gente - diziam, de dentro.
Minutos depois, novo truz-truz e a mesma voz a anunciar: O senhor Albano desconfiou e também ele bateu:
- Está gente - foi a resposta.
- Isso é que não está - disse o senhor Albano, atirando um ombro à porta que, por sinal, estava fechada à chave.
- Está gente - gritou um indignado protesto, do outro lado.
Novo encontrão, a porta cedeu e o senhor Albano entrou, de repelão. Afinal, desta vez, estava mesmo gente, logo, para mais, uma senhora...
- Ah, desculpe que foi engano! - exclamou, atrapalhado, o dono do restaurante.
O papagaio, que a tudo assistira, escondido atrás de umas pipas, riu que se fartou. Ou não se fartou, porque daí em diante, por tudo e por nada, gritava:
- Albano foi engano - e largava uma risada daquelas amalandradas, de rebentar com os nervos a um santo, quanto mais a um Albano, dono de um tasco de comes e bebes. O que ele barafustava:
- Palavra que, um dia, perco a cabeça e meto-te na panela.
- Perdias clientela - gritava o papagaio.
- Deixo-te a cozer!
- Ficavas a perder...
- Com batata às rodelas!
- Depois é que eram elas...
- Sal, azeite ou margarina...
- Servido com presunto...
- Albano sem bestunto!
- E salsa bem picada...
- Sem mim não eras nada!
- Sabias a galinha.
Neste ponto, o papagaio eriçava-se todo e gritava:
- Galinha, qual galinha?!
A minha carne é minha! A minha carne é minha! E voava assarapantado, deitando ao chão tudo o que estivesse nas prateleiras do restaurante. Nessas ocasiões, o senhor Albano, avaliados os estragos, também não se ficava a rir.
Fora estes arrufos, davam-se os dois muito bem.
- Ficavas na ruína! Ficavas na ruína!
- Está gente.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

O ALFABETO DA FELICIDADE


(A): É muito difícil definir a FELICIDADE, esse bem tão desejável. No entanto, podemos falar sobre ela, expondo diferentes ângulos pelos quais pode ser vista, apreciada e compreendida. Assim, podemos afirmar, por exemplo, que a felicidade está presente quando não somos obrigados a fazer o que não queremos. O simples fato de termos de engolir o que não queremos nos torna infelizes, não é verdade? Outro exemplo: as coisas complicadas raramente trazem felicidade; ela é mais facilmente encontrada nas coisas simples.
(B): A felicidade não se permite ser egoísta. Quando verdadeira, ela quer espalhar-se, contaminar tudo à sua volta. Ela quer doar-se! Nesse sentido, é uma riqueza que a todos quer enriquecer.
(C): Não existe felicidade completa. Quando compreendemos e aceitamos esse fato, ficamos mais sábios, passando a saborear melhor cada gota de felicidade proporcionada por nosso destino e nossos esforços.
(D): A felicidade tem de ser procurada ativamente. Se ficarmos passivamente à espera de alguém ou de algum fato que nos traga felicidade, veremos que ela nunca chegará. Ao contrário, é muito provável que a tristeza chegue antes dela.
(E): A felicidade é uma graça exigente, pois requer inteligência, energia, atenção e empenho. Só quando esses requisitos estiverem presentes, ela poderá se aproximar de nós.
(F): Ser gentil traz felicidade, pois é uma atitude pertencente à família do AMOR.
(G): A felicidade é uma árvore cujas raízes estão dentro de nós mesmos; apenas suas folhas dependem das coisas exteriores.
(H): Por incrível que pareça, o fato de termos sido infelizes nos permite apreciar melhor a felicidade.
(I): A verdadeira felicidade está em ficarmos livres de preocupações, emoções negativas e desejos incontroláveis.
(J): Os deuses nos criaram para sentirmos felicidade. Somos nós que fazemos de tudo para atrapalhar esse desígnio.
(L): O descontrolado excesso de desejos é o maior inimigo da felicidade.
(M): Ter bom coração nos traz o prêmio da felicidade.
(N): Beneficiar os outros atrai a fada Felicidade.
(O): Ter felicidade é estar bem na cabeça, no coração e no corpo.
(P): Quando, de alguma forma, proporcionamos felicidade, nos tornamos felizes.
(R): A felicidade é um pássaro fugaz e, por isso, não devemos tentar prendê-lo; podemos apenas admirar a sua beleza.
(S): Quem souber suportar o sofrimento com dignidade e nobreza chamará a felicidade para si.
(T): A felicidade ama quem procura sinceramente ser sábio, honesto e justo.
(U): Felicidade é estar bem na própria pele.
(V): Viver prisioneiro do egocentrismo é a maior das infelicidades. Ser capaz de sair dele, mesmo que por instantes, já é felicidade.
(X): Para um coração habitado pela felicidade, tudo é festa. Para um coração habitado pela raiva e pela mágoa, nem a melhor das vidas tem graça.
(Z): A felicidade faz dos desprovidos, milionários.
No texto acima, apresentamos apenas o alfabeto da felicidade. Existe, porém, a possibilidade de um aprofundamento muito maior desse tema de central importância para o ser humano. Nossa intenção aqui foi a de indicar apenas os primeiros passos a serem dados no caminho da felicidade.

Carta de Natal


Escrevo esta carta para te fazer o meu pedido de Natal.


São vinte e três, um de cada letra do abecedário.

São para mim e para todas as pessoas do mundo.



Amor. Para dar e receber.

Bondade. Para os corações que não têm a necessária.

Coragem. Para enfrentar os problemas do dia a dia.

Decisão. Poder decidir com a mente e com o coração.

Esperança. Que seja a ultima a morrer.

Felicidade. Todos merecem ser felizes.

Generosidade. Dar sem esperar receber.

Honestidade. Ser honesto é virtude.

Igualdade. Mesmo que as pessoas sejam diferentes.

Justiça. Porque a injustiça é cruel.

Liberdade. É um bem precioso.

Moral. Para saber distinguir o bem do mal.

Nacionalidade. Todos devem ter uma nação.

Orientação. Que ninguém se sinta perdido.

Paz. Porque a guerra não pode vencer.

Qualidade. Não interessa ter muitos se não forem bons amigos.

Respeito. Respeitar e ser respeitado.

Saúde. Para o corpo e para a mente.

Tranquilidade. Mesmo nos momentos mais difíceis.

União. Porque a união faz a força.

Valentia. Porque a coragem é a mais forte.

Xarope e outros medicamentos. Não faltem a ninguém.

Zelo. Temos que zelar uns pelos outros.


Estes 23 pedidos sao para oferecer a todos os meus amigos...

História do dia



A Cegueira do Príncipe


António Torrado (escreveu)


Cristina Malaquias (ilustrou)

Veio esta história de longe, da Índia, que é terra fértil em histórias de encantar. Aí se conta de um príncipe filho do poderoso marajá (que era um rei da Índia, de antigamente), aí se fala de um príncipe cego.
Inexplicável doença roubara-lhe a luz dos olhos e nenhum sábio ou médico dos mais eminentes conseguia atinar com a cura do seu mal. O rei (o marajá) só vivia para o seu desgosto e toda a corte mergulhara também em grande tristeza.
Mas, um dia, apresentou-se no palácio um peregrino que disse:
- Sei do remédio que cura o príncipe.
O marajá chamou-o logo à sua presença:
- Diz-me o que precisas para livrar o meu filho da cegueira, que tudo se fará como tu ordenares. - Preciso apenas de uma taça de cristal - respondeu o peregrino - e que Vossa Majestade me acompanhe numa viagem, através do reino.
Rei e peregrino desceram às ruas e aos campos miseráveis do reino. Por onde passavam, onde houvesse lágrimas vertidas pelo povo, lágrimas de sofrimentos, de misérias, de injustiças sofridas e caladas, o peregrino colhia-as na sua taça de cristal.
Quando tiveram a taça quase cheia de lágrimas - o que não foi difícil, porque o povo daquele reino era pobre e vivia abandonado, no meio da sua pobreza -, quando deram por finda a viagem e regressaram ao palácio, o peregrino banhou os olhos do príncipe com o conteúdo da taça.
Que ninguém se admire com o que sucedeu...
Imaginem que logo, naquele instante, o príncipe voltou a ver. A história não conta se o rei, depois desta viagem, passou a cuidar melhor dos assuntos do reino nem se o príncipe, uma vez rei, foi bom e justo para o seu povo.
A história não conta, mas nós acreditamos que sim, que foi tal e qual como nós desejamos que tudo passou a acontecer.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

História do dia


O Senhor Gordo


António Torrado (escreveu )


Cristina Malaquias (ilustrou)



Era uma vez um senhor muito gordo.Foi ao médico dos gordos, que querem passar a magros ou a menos gordos. Um médico muito famoso.
- O que o senhor precisa é de fazer exercício - disse-lhe o médico.
- Que género de exercício? - perguntou o senhor muito gordo.
- Desporto - explicou-lhe o médico.
- Ginástica, natação, corrida...
O senhor gordo, que também era muito preguiçoso, preferiu a corrida, mas a cavalo. Sempre era mais confortável.No mês seguinte, voltou ao médico.
- O senhor está na mesma - disse-lhe o médico, depois de medir-lhe a cintura.
- Não emagreceu nada.
- Mas emagreceu o cavalo - esclareceu o senhor gordo.
- Depois deste mês de exercício, a carregar comigo, está só pele e osso.
E o senhor continuou gordo, para o resto da vida.
O cavalo, esse, teve de ir consultar um veterinário, a ver se engordava.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

HISTÓRIA DO DIA




A Fonte dos Pardais

António Torrado (escreveu)

Cristina Malaquias (ilustrou)

Era uma vez uma fonte à beira da estrada. Os pardais das árvores vizinhas tinham ali o seu ponto de encontro.
Matavam a sede, tomavam banho, chilreavam uns com os outros.De semana a semana, vinha um homem, sempre de automóvel, buscar água à fonte. Enchia uma quantidade de garrafões de plástico e, depois, abalava. Nessas alturas, a pardalada fugia para o poiso das árvores e ficava a observar.
- O que é que ele vai fazer com tanta água? - intrigava-se um pardalito novo.
- Deve ir regar as couves - sugeria um pardal.
- Para ele regar as couves é pouca - replicava uma velha pardoca, muito conhecedora da vida.
- Então é para ele beber - propunha outro pardal.
- Para ele beber é muita - replicava a velha pardoca.
- Para o que será? - perguntava o pardalito, sem que ninguém soubesse responder-lhe.
Decidiu investigar. Voou atrás do automóvel, mas como ainda tinha as asas com pouca força e a estrada era às curvas e contra-curvas, perdeu-lhe o rasto. E perdeu-se.
Esvoaçou ao calhas, até descer sobre um telheiro, junto à estrada. No telheiro havia melões à venda e cebolas e batatas e garrafões de vinho. Alto lá! E também havia garrafões de água, tal e qual os que o homem do automóvel enchia, na fonte dos pardais.Se o pardal soubesse ler, leria no rótulo dos garrafões: "ÁGUA DA FONTE DA SAÚDE - Graças a ela, os novos crescem e os velhos não encolhem".
Aos saltinhos, diante dos garrafões, o pardalito admirava a fotografia do rótulo. Lá estava a fonte, centro da sua vida, e uns passarinhos a beber água no rebordo do tanque. Vendo bem, aquele mais pequeno, à direita, podia ser ele, o pardalito aventureiro.
Muito orgulhoso da sua descoberta, o pardal voou muito alto, tão alto que, lá de cima, viu o telheiro dos garrafões, a estrada às curvas e a fonte da Saúde ou dos pardais, donde ele viera. Disparou em direcção ao ponto de partida e muito excitado piou para os companheiros:
- Já sei o segredo dos garrafões. O homem anda a vender o nosso retrato mais o retrato da nossa fonte.
- E a água para que serve? - perguntou um companheiro.
- Para segurar o nosso retrato - respondeu, prontamente, o pardalito.

terça-feira, 25 de novembro de 2008


Zé Desgraçado

António Torrado (escreveu)

Cristina Malaquias (ilustrou)

Era uma vez um homem muito pobre. Não tinha nada de seu e vagabundeava, todo esfarrapado e de longas barbas cinzentas, de terra em terra, vivendo de esmolas.
Chamavam-lhe Zé Desgraçado e, com o tempo, esse passou a ser o seu verdadeiro nome. Há também que dizer, à partida, que a história se passa em África. Zé Desgraçado ia pelo meio do mato quando encontrou um antílope morto, trespassado por uma azagaia. Pensou: "Escapou-se, escondeu-se e morreu. E o caçador passo a ser eu".
Todo contente, começou a juntar lenha para fazer uma fogueira onde assar o antílope. Nisto, um passarinho poisou-lhe no ombro e disse:- Zé Desgraçado, não comas essa carne.
Continua em frente, que o melhor está para vir.Zé Desgraçado, embora contra-vontade, correspondeu ao conselho do passarinho.Seguiu viagem, apertadinho de fome, mas seguiu. Mais adiante, encontrou uma gazela, morta, também trespassada por uma azagaia.O vagabundo pensou: "Escapou-se, escondeu-se e morreu.
E o caçador passo a ser eu".Mas, de novo, o passarinho lhe disse:- Zé Desgraçado, não comas essa carne. Continua em frente, que o melhor está para vir.
Muito contrariado, o mendigo avançou pelo meio do mato. Assim, chegou ao deserto. O passarinho, que não o largava, animou-o a continuar a viagem.
Sob o fogo do sol, cheio de sede e de fome, o Zé Desgraçado arrastou-se pela areia. Dunas sobre dunas e mais dunas e dunas...
Até que chegou a um oásis. Como se estivesse à espera dele, um rancho de criados despojou-o dos farrapos, mergulhou-o numa tina de água perfumada e cobriu-o, depois, de ricas vestes. O vagabundo já não parecia o mesmo, embora continuasse com fome. Os mesmos criados conduziram-no a uma grande tenda, onde estava uma bela senhora vestida de penas.
Ela falou, a desejar-lhes as boas-vindas, e o Zé Desgraçado reconheceu a voz do pássaro que o conduzira.
Era viúva e única dona do oásis e da mina de ouro que nele havia. Parece que estava tudo predestinado para que ali se realizasse um casamento, seguido de sumptuosa boda... Ao Zé Desgraçado convinha-lhe, tanto mais que continuava cheio de fome.
- Vais casar-te comigo - disse-lhe a senhora.
- Mas imponho-te uma condição: nunca podes olhar para trás.
O vagabundo estava por tudo. Desde que comesse qualquer coisinha...
Depois da cerimónia do casamento, estenderam as iguarias, sob a cúpula da tenda. Manjares deliciosos. Entre eles, um antílope e uma gazela. Zé Desgraçado que ia a provar, de água na boca, um bocadinho de carne tostada, lembrou-se:
- No caminho para cá, encontrei um antílope e uma gazela, iguais a estes.
E apontou para trás. E olhou para trás.Logo tudo se desvaneceu.
Nem que fosse um sonho. Zé Desgraçado voltou a encontrar-se no meio do mato, sozinho e cheio de fome.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

História do dia


O Tesouro da Vila
António Torrado (escreveu )
Cristina Malaquias (ilustrou)

Andava o senhor Firmino a vender lotaria nas ruas de Vila Nova, ao começo deste estranho caso. Era cauteleiro o senhor Firmino.
- Quem quer a sorte? O Firmino dá sorte! Quem quer os últimos para amanhã? - apregoava ele.
De boné à banda, com um cacho de cautelas penduradas do braço, o senhor Firmino percorria a vila. Tinha a cara queimada do sol e do vento, que lhe baralhava os bilhetes inteiros e as listas dos prémios.
- Anda amanhã a roda para os números do Firmino - prometia.
- Ainda tenho um bilhete quase inteiro com o meu palpite...
Era muito popular na vila o senhor Firmino. Houve, por isso, um grande sobressalto quando se soube o que tinha sucedido ao senhor Firmino. Calculem que...
O melhor será dar-lhe a palavra, porque ele sabe contar melhor do que eu:
- Já há tempos que não ia para os lados do Outeiro, lá no fim da vila. O sítio é mau para vender jogo. Tem pouco movimento, mas, junto à bomba da gasolina, às vezes, consigo arranjar freguês. Ia com o sentido nisso, porque queria despachar jogo. Na bomba, já uma vez me ficaram com um bilhete...
- E desta arranjou fregueses novos... - interrompeu alguém.
O senhor Firmino zangou-se:
- Não brinque com a minha pouca sorte, homem! Podia eu lá calcular que me ia suceder uma daquelas?! Eu ia para lá, e cruzei-me com um rebanho de cabras, tocadas por um garoto, que é afilhado do Bolota. Estava uma ventania dos diabos. P
ara proteger os bilhetes, ajeitei-os debaixo do casaco e segui caminho. Passei pelo meio do rebanho e, de facto, reparei que uma das cabras engraçara comigo e se pusera a seguir-me, com o focinho a roçar-me as pernas. Achei simpático o bicho e até me virei para lhe fazer uma festa, calculem! Nessa altura, a cabra fugiu e foi quando eu vi que ela levava nos dentes um bocado de papel cor-de-rosa.
Tive um pressentimento, fui ver o jogo e faltava-me um bilhete, um dos que tinha ficado fora do casaco. A cabra papara um bilhete, parte do qual levava ainda na boca. Corri atrás dela, corremos os dois, eu e o pastor ou os três, eu, o garoto e a cabra, que corria mais do que nós dois juntos. Claro que, quando a apanhámos, já tinha engolido o resto.
Disse-me o rapaz que ela, no outro dia, comeu uma toalha e um lençol. Que esperam dum bicho destes?
- E agora? - perguntaram.
- Agora é esperar. Fui ter com o Anselmo Bolota, que é o dono das cabras, e ele, depois de grande questão, resolveu pagar parte dos prejuízos, ou seja, ficou com três décimos do bilhete que a cabra comeu.
- Então o resto?
- Quem vai arriscar-se a comprar cautelas que estão na barriga de uma cabra?
Com o resto fico eu ou a cabra, a única, afinal, que já ganhou. O número é o 17029. Depois de amanhã anda a roda! Foram dois dias ansiosamente vividos por todos os de Vila Nova e arredores. Não se falava de outra coisa. E se o 17029 ganhava a Sorte Grande?
Era uma pipa de massa, pois então! A dividir por quem? Pelo Firmino e pelo senhor Bolota, que só comprara três décimos, mas era o dono do animal! Por ninguém, visto que não havia bilhete que comprovasse, depois, aos balcões da Santa Casa, o direito ao prémio?
Mas que grande complicação! No Café Central, na Leitaria Sevilhana, no Jardim da Guia, no largo da Igreja, no pátio da escola, nas lojas da Rua dos Alecrins, o único tema era o tesouro, o possível mas obscuro tesouro, guardado e bem guardado na barriga de uma cabra de seu nome Rabisca. E essa, sim, a Rabisca, como se comportava ela? Ora!
Continuava a mastigar o que lhe vinha ao dente, sem ligar a mínima importância à balbúrdia que tinha provocado. "Ai, se saísse a sorte grande no 17029!...", pensava o senhor Firmino, o senhor Bolota e toda a vila, em peso.
Andou a roda, saltitaram as bolinhas dos números, mas o 17029 ficou-se no meio dos outros, dos que não saíram pela porta mágica da fortuna. Quando a vila soube que o 17029 não tinha sido premiado, respirou finalmente, aliviada.
O senhor Firmino queixou-se da sua sorte e prometeu nunca mais comer queijo de cabra, mas com o tempo, o bom cauteleiro acabou por levar o caso para a brincadeira.