Má Boca
António Torrado (escreveu)
Cristina Malaquias (ilustrou)
Dantes, lá para os lados da Rússia ou mais longe ainda, havia uma rainha
caprichosa e esquisita de boca, que, por maldade ou
desfastio, se especializara em provocar dores de cabeça aos cozinheiros do palácio.
- Amanhã quero para o almoço um puré de pétalas de açucena, colhidas ao alvorecer e sem mais tempero senão dois dedais de manteiga, fabricada com o leite de vacas brancas, sem malha nenhuma no dorso. Isto que venha a acompanhar finas fatias de fiambre de salmão da Geórgia, pescado à mão por mergulhadores bizantinos. Não esquecer o pormenor dos mergulhadores bizantinos, indispensável para a boa qualidade do salmão.
Os cozinheiros registavam a encomenda e suspiraram para dentro, porque se suspirassem para fora, ai deles! Por muito menos já alguns tinham sido chicoteados... Tempos maus esses para os cozinheiros.
Cada dia, uma extravagância nova. Quando, uma vez, a rainha exigiu, para um jantar de festa, bifes de dragão, os cozinheiros entreolharam-se, em silêncio, cheios de pavor. Onde é que eles iam encontrar um dragão? E como é que haviam de caçá-lo, eles, humildes cozinheiros, que não conheciam outras armas senão as facas de cozinha, os trinchantes e as escumadeiras? Que aflição.
Foram ter com o rei, para pô-lo a par do que a sua real esposa pretendia. E explicaram-se:
- Um dragão, tão nobre bicho, não se deixa caçar por cozinheiros. Só um caçador real conseguirá tal proeza.
O rei percebeu logo onde eles queriam chegar. Mandou-os em paz. Depois, foi ter com a rainha e disse-lhe:
- Minha senhora esposa, venho despedir-me. Parto para a caça ao dragão, que vos apeteceu. Se não regressar dentro de dois dias é porque o dragão decidiu incluir-me no jantar dele, em vez de ser ele incluído no vosso.
A rainha, que se achava ainda muito nova para experimentar a viuvez, protestou, dizendo que afinal a ideia dos bifes de dragão talvez não tivesse sido muito feliz, tanto mais que, segundo constava, a carne de dragão era um bocado
indigesta.
- Talvez para o dragão a minha seja menos - comentou o rei, com ar decidido.
E partiu. Demorou-se.
Passaram dias, semanas, meses e o rei sem voltar.
Constava que, para lá das montanhas, encontrara um dragão no seu covil e com ele batalhara, na vã tentativa de arrancar-lhe uns bifes, ao que o dragão se opusera.
Ao fim da luta, ganhara quem tinha de ganhar... Pobre rei! A rainha nunca mais se lembrou do jantar de festa nem de qualquer outro jantar ou almoço ou pequeno-almoço. Recusava-se a comer, carregada de desgosto e luto. E carregada de remorsos.
Um dia, apareceu à porta do palácio um mercador, que apregoava dentes de dragão. Tinha um ar estranho, usava um manto até aos pés e pesadas barbas que lhe fechavam o rosto. Pediu para ser recebido pela rainha.
Quando ela viu, enfiado num dos dentes de dragão, um anel a luzir, a senhora rainha desmaiou. Tinha reconhecido o anel, usado pelo rei.
- Ai o meu pobre Carlos! - gemeu ela, ao desfalecer.
- Carlos Terceiro, Imperador da Transcaucásia, Caucásia, Subcaucásia e Recaucásia, Califados vários e Emiratos anexos. Sim, eu, o rei vosso marido - disse o mercador, arrancando as barbas, que eram postiças claro, já se percebeu.
A rainha, desmaiada, desfalecidinha de todo, apanhou, para restabelecer a circulação, uns tabefes meiguinhos e, quando acordou e se viu nos braços do marido, mais não conto...
Conto só que se curou dos apetites maníacos e que agora come de tudo, carne, peixe, fruta e doces do menu corrente e sempre com temperança real, como convém a tão distinta majestade. Nunca se chegou a saber se os dentes de dragão seriam verdadeiros. Eu desconfio...