CORREIO DA CARNEIRO - DEPARTAMENTO CURRICULAR DO 1.º C.E.B. DO A.F.G.CHAVES

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008



Três Bastonadas

António Torrado (escreveu)

Cristina Malaquias (ilustrou)

Esta história aconteceu num tempo que até custa a recordar. Dói. Dói muito. Mas há dores e ardores que fazem bem, que curam. Por exemplo, um pacho de água oxigenada em cima de um arranhão (ou mesmo uma gota de álcool) desinfecta. Claro que dói, mas sopra-se, alivia e passa.
É o que vai acontecer com esta história, prometo.
Nesse tempo, os filhos de servos eram servos também.
Os pais trabalhavam, nos campos ou nos castelos dos senhores fidalgos, e os filhos, mal podiam carregar com um balde de água ou manejar uma enxada, eram também obrigados a trabalhar. Escolas? Não havia. Leis que protegessem a infância? Estava-se ainda muito longe de pensar nisso.
Vamos chamar José ao rapaz da nossa história. É órfão e servo. Vai ser castigado. Injustamente.
Uns figos que estavam a secar na eira desapareceram, roubados por algum guloso, e as culpas foram cair no José. Porquê? Porque sim. Era o mais novo dos trabalhadores. Só podia ser ele.
De nada lhe serviu gritar a sua inocência. Quem acredita num garoto, ainda por cima servo, um desclassificado, um ranhoso?
A mando do senhor, o capataz ferrou-lhe três bastonadas nos ossos, à vista de todos, para que servisse de exemplo. José chorou toda a noite, de dor, de humilhação, de revolta.
Voltou a chorar, dias depois, quando soube que o autor do roubo dos figos tinha sido o filho mais novo do senhor. Até houve quem se risse. Entre eles, o filho mais novo do senhor.
As bastonadas, essas, não podiam ser apagadas das costas do servo José como quem apaga, numa folha, um risco errado.
José jurou que havia de vingar-se, demorasse o que demorasse a vingança. Eles, capataz, senhor e filho, iam pagar as três bastonadas e a vergonha.
O mundo deu muita volta. José cresceu.
Puseram-lhe uma lança na mão e disseram que ele era soldado. Como soldado andou por batalhas confusas, dando e levando, sem saber ao certo à conta de quem combatia. Os mandantes da guerra ora se aliavam ora se zangavam e os respectivos exércitos eram ajustados ou retalhados, ao sabor dos caprichos dos senhores.
Um dia, José, no meio de uma refrega, viu-se diante do filho do senhor, tão homem feito como ele. Vinha a cavalo, pronto a enfrentar outro cavaleiro da sua estirpe. José, com o cabo da lança, deu-lhe uma bastonada que quase o derribou do cavalo. Depois, soldado apeado, continuou a correria atrás do pendão, indiferente ao destino do adversário.
Só lhe faltavam duas bastonadas.
Aconteceu que no fim dessa batalha, o cirurgião do exército em que o José estava alistado precisou de ajudantes. José ofereceu-se e tão bem se houve a cuidar dos feridos que o mestre cirurgião o pôs ao seu serviço.
Quando, finalmente, voltou a paz àquelas terras, o cirurgião não quis desfazer-se do aprendiz.
José aprendeu com o mestre tudo o que ele tinha para ensinar. Foi assim que o antigo servo órfão acabou por tomar, por sua conta e risco, o título de cirurgião.
Naquele tempo, como já disse, não havia escolas. Davam-no como um grande doutor.
Vieram, uma vez, ter com ele, a pedido do castelão, aflito com um osso de galinhola atravessado nos gorgomilos.
José foi visitá-lo e deparou com o senhor que ordenara as bastonadas. O homem estava quase sufocado.
- Tragam-me um pau - pediu José, diante do doente. - Para se livrar dessa aflição, tem de levar uma bastonada.
Parece que cuspiu o osso, mas José já não quis saber. Também não tinha levado nada pela consulta.
Só faltava uma bastonada.
Ele a sair do castelo e um moleiro a vir ter com ele aos gritos.
- O meu pai estava a ajudar-me a desmanchar o engenho do moinho e cai-lhe a mó em cima de uma perna. Que desgraça!
José acudiu e foi dar com o antigo capataz a torcer-se de dores, com uma perna esmagada pela mó do moinho.
- Traga-me um pau bem grande - pediu o cirurgião José, que antes tinha sido José, menino órfão, servo castigado inocente.
O filho do capataz trouxe um pau.
- Maior - exigiu o cirurgião José.
O filho do capataz foi buscar. Quando veio com uma viga de todo o tamanho, José disse-lhe:
- Agora ajude-me que eu sozinho não consigo.
Entalou o madeiro entre o chão e a mó, os dois em peso fizeram de alavanca e assim conseguiram arredar a perna do capataz do aperto em que estava.
- Salva-se? - perguntou o filho do capataz.
O cirurgião José olhou para a perna ensanguentada e para o desfalecido capataz e respondeu:
- Salva-se.
E tratou-o. E salvou-o.
Esta bastonada foi a que lhe deu mais gosto pagar.
O senhor ofereceu as costas de bom grado e zás, apanhou uma paulada e tanto.

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